O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em decisão incomum, decidiu que prefeitos com mandatos cassados não deverão ser afastados durante o período da pandemia da Covid-19. Ainda que a decisão recaia sobre casos particulares sem efeito vinculante, a decisão causa estranheza e cria jurisprudência da Corte Eleitoral. O argumento da excepcionalidade do momento difícil que atravessamos é plausível, mas não termina de convencer a comunidade jurídica em tema tão delicado.
A decisão de não afastar dos cargos os prefeitos já cassados foi tomada nos casos concretos dos prefeitos de Ribeira do Piauí (PI) e de Presidente Figueiredo (AM). A tese aprovada por maioria do TSE argumenta que afastar os prefeitos durante a pandemia poderia colocar em risco a continuidade das políticas públicas relacionadas ao enfrentamento da crise de saúde pública. O presidente da Casa, Luís Roberto Barroso, afirmou que é preciso “sacrificar, com a menor distorção possível, a ordem jurídica em favor de um bem maior, que é a saúde pública”.
Mais que isso, os ministros sinalizaram aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) que a decisão deveria servir como orientação geral, criando uma espécie de “jurisprudência de crise”. Não obstante a decisão incomum e a recomendação geral neste sentido, a Corte deixou claro que casos excepcionais que versem sobre a mesma matéria poderão ser reavaliados, o que significa dizer que apesar da recomendação a decisão não tem efeito vinculante para processos em andamento ou futuros.
Apesar da justeza argumentativa, pois todos sabemos que a tarefa central dos poderes da república e dos entes federados é o combate orquestrado à pandemia, cria um precedente jurídico de exceção temerário. Isso porque rompe um perigoso limiar entre os esforços do poder público para defender a vida do direito fundamental do povo à vida e o também direito fundamental à liberdade democrática da representatividade do povo por meio do voto. Quando o mandatário público se elege por meios ilícitos que turvam e mancham a liberdade de escolha do povo, seja por abuso de poder econômico ou político, a escolha livre pelo voto está rompida.
Ou, ainda, pode um prefeito ser cassado por ilícitos criminais, de responsabilidade, de improbidade durante o mandato, pois estariam se opondo às atribuições precípuas de seu poder de zelar pelo bem público e, portanto, da vontade do povo. Ora, e se um desses ilícitos restar figurado justamente quando o agente público deixa de cumprir com sua obrigação de empregar os meios eficientes e recomendados pelos órgãos técnicos de saúde durante a pandemia e sacrifica, assim, o bem maior da saúde pública? O imbróglio é grande.
Ainda que a tese aprovada pelo TSE seja defensável e compreensível, deu origem a uma excepcionalidade perigosa e que deve ser evitada mesmo nos momentos de maiores crises para que o Estado Democrático de Direito não seja colocado em xeque. A decisão não é vinculante e, portanto, não configura uma ruptura democrática propriamente dita, mas abre um precedente temerário.
*Nara Bueno é advogada especialista em Direito Eleitoral
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